Algum tempo depois de seu lançamento, o segundo álbum de estúdio do americano Bloodydriver é uma demonstração da luxúria muito precisa, revestida em couro, fetiches, poesia, feitiçaria e tragicidade. “tormenta” é enérgico e ainda assim muito intenso em seus sentimentos, em canções que certamente vão ditar tendências.
“volcano” é um verdadeiro statement. Bloody incorpora aqui um grande espírito da natureza em sua revolta, e questiona a sua frieza tantas vezes levantada por seu alheio. Ele pede para ser tratado como um deus e ser tocado como algodão, mesclando o sutil com o enérgico, que funciona incrivelmente bem.
Em “immaculate”, novamente o artista muda a sua forma, em uma espécie de santo justiceiro em busca de redenção após um relacionamento tóxico o enjaular. A letra é uma construção, em que aos poucos deixa mais clara uma certa sede de justiça quando promete derrubar os que estiverem em seu caminho. Não soa tão boa quanto sua antecessora, mas ajuda a pavimentar um grande caminho ao disco.
Na conhecida “beach”, pode-se até mesmo brincar com a sonoridade similar à da palavra “bitch”, pois quando Bloody conta sobre seu novo achado, uma gelada praia onde seu coração foi congelado e isso impõe algumas regras em como o seu semelhante deve se comportar, o teor sexual implícito em um jogo de permissões ou negações é divertido e nos causa uma verdadeira experiência sensorial. Um dos pontos altos do LP.
“drown”, no entanto, não tem o mesmo charme ou expertise da sua anterior, se tornando apenas uma canção repetitiva e com uma evolução um pouco medíocre. Aqui, o artista brinca um pouco em ser um monstro mas com algumas boas intenções e o desejo bem incisivo de se afogar no mundo onde em suas buscas, ele não precisa de Deus.
“sangre” é emblemática e com certeza uma das canções mais memoráveis do artista, mas olhando para trás desde o seu lançamento, é possível traçar um paralelo em relação à qualidade presente na canção e o seu sucesso. O lead-single do “tormenta” não é a melhor canção do disco, passando longe disso, mas mesmo assim ela sintetiza uma grande energia presente no álbum. Sem dúvidas, ela ditou tendências na música alternativa, mas hoje há um esvaziamento muito grande no seu real propósito.
Agora, em “high”, finalmente há uma canção de fazer o sangue de qualquer um borbulhar. Altamente sedutora e com uma composição excelente, trabalhando em uma letra menos metafórica, o que talvez agora, quase na metade do disco, possa trazer um pouco de alívio em alguns detalhes de canções passadas que possam soar um pouco forçadas ou muito desconexas.
“chaoscity”, colaboração com Alexxxia, faz a leva de canções fracas retornar com tudo. Bloody aparece caracterizando em suas linhas obscuras a denominada cidade do caos onde seu amante e ele vivem um tórrido e quente romance. A construção da canção é bastante singular e direta, mas a participação da artista brasileira faz a música voar a outro destino em linhas desconexas. Ela tem boas referências e entendeu o sentido da composição, mas parece ter se perdido, tentando demais estar na linha fora da caixa que Bloodydriver tem.
“chromyl”, oitava canção, nos deixa sem ar do início ao fim mostrando o melhor de Bloody em uma canção que já nasceu icônica. As referências à química nunca exploradas antes com tanta inteligência fazem desse o hit assinatura do cantor. É, provavelmente, o melhor momento lírico em “tormenta”, não apenas pelo shock value, mas sim pela riqueza em seus pontos mais cruciais, e na sua tracklist, um respiro de alívio.
Já “casulo”, com Serina Fujikoso, é uma canção para chocar. A intenção foi validada e concretizada, pois o erotismo aqui é vulcânico e explosivo, misturando o inglês e o espanhol com pinceladas grosseiras de vulgaridade. É uma típica canção de Serina, que aqui, prova que trouxe a melhor colaboração do disco em uma voluptuosa marca registrada sua. Aqui, não há rodeios com metáforas; os artistas vão direto ao ponto e deixam a temperatura nas alturas com a nona faixa.
“mercy” traz uma roupagem agressiva similar ao começo do disco, mas agora, a arma de ouro de Bloody parece pronta no gatilho, para atirar. É uma canção por ora divertida, que deixa o clima do disco mais conciso e mantém alguns padrões que a faixa anterior trouxe, nos trazendo de volta à narrativa do projeto com um gás novo e mais potente.
Na canção-título, “tormenta”, há uma borbulhante sinergia. Sincera, ácida, tempestuosa, a décima track carrega todo o sentido que o álbum tem. Bloody quer romper o seu silêncio e deixar claro para todos que a fúria que carrega dentro de si é violenta, mesmo com uma expressão tão tranquila estampada em seu rosto. Um ponto alto do projeto e com certeza um single material quente. Mas após soltar seus raios e trovões, a composição de “voodoo” soa como uma tentativa de recolher os pedaços de alguém despedaçado, desesperado por ver seu amante ir embora, em um reconhecimento triste de quem ele é, no fim das contas. A ótima faixa nos mantém acesos e mostra uma vulnerabilidade marcante, realmente tocante.
Encerrando, “funeral” é uma despedida dramática. Sua morte teatral é o fechar de cortinas e também soa e transparece algo similar ao fim de uma era. É uma canção densa e obscura, muito brusca e pesada. Pode parecer esquisita e um pouco desconexa, mas quando alinhada ao sentido geral de um tormento como Bloodydriver, há de ser trágico como uma peça grega antiga. É uma grande composição.
O visual do álbum é moderno, caótico, em seus tons de rosa agressivos e cores quentes, que emergem como lava. O artista soube alinhar perfeitamente o encarte à atmosfera sinistra, esquizofônica e alucinante de suas canções em um trabalho de design realmente primoroso.
“tormenta” é um curioso exemplo de como um artista pode se reinventar de maneira tão distinta. O segundo full-lenght de Bloody tem bons e maus momentos, e está longe de ser perfeito, mas ainda assim carrega em si uma graça e uma densidade formidáveis. A sua escrita é radical, ora muito exagerada e perdida em muitos enfeites e metáforas inofensivas mas inconsistentes, ora um deleite erótico excitante e revigorante. O artista consegue misturar o melhor de seus universos caóticos e silenciosos em uma jóia do alt-pop que promete reverberar por algumas gerações.